Em entrevista, psicóloga autista explica estereótipos sobre altas habilidades
Geralmente associamos a superdotação, ou altas habilidades, aos gênios.
Pessoas muito inteligentes com interesses particulares e alto desempenho em música, matemática, filosofia ou física.
Nessa entrevista, a psicóloga e pesquisadora de neurodivergências francesa Adeline Magnon, hoje radicada na Espanha, fala sobre como esse é apenas um estereótipo e um perfil possível para as altas habilidades.
Focando a conversa nas características das altas habilidades em meninas, em especial também autistas, Magnon (ela própria diagnosticada autista com altas habilidades) explica a dificuldade de diagnóstico para esse grupo, os impactos das altas habilidades e do autismo no dia a dia das meninas, e o peso sóciocultural sobre a discussão da inteligência em homens e mulheres.
Muitas pessoas acreditam que ter altas habilidades significa ser gênio em ciências ou música. Isso é verdade? Esse é um estereótipo muito comum, mas não é isso.
Ser um gênio em uma área significa que você desenvolveu suas habilidades através da prática e teve o “ambiente adequado” para desenvolver seu potencial.
Ter um talento específico em determinada área se destaca mais, por isso pensamos mais nesses perfis quando falamos de altas habilidades, mas é apenas um perfil entre muitos.
Existem muitas formas de compreender as altas habilidades e tudo depende da definição que usamos e do modelo teórico que nos respalde. No entanto, acredito que todas estas definições estão alinhadas em afirmar que uma coisa é ter alto desempenho e outra coisa é ter altas habilidades.
E que ter altas habilidades não implica necessariamente em desenvolver esse potencial em algo “produtivo” para a sociedade. Para mim, ter altas habilidades é ter um cérebro que funciona de maneira diferente, com uma maneira diferente de ser, de perceber e de funcionar no dia a dia — embora outros autores considerem isso como um conceito meramente social. Posso ter altas habilidades, não ter alto desempenho e, ainda assim, perceber o mundo de uma forma muito intensa.
Como é feito o diagnóstico de altas habilidades? Voltamos ao maior problema que temos com as altas habilidades: a definição.
Dependendo de como for definida, a forma como pode ser diagnosticada mudará. Antes, as altas habilidades eram tidas como um alto QI [quociente de inteligência].
Bastava, então, fazer um teste de medição de inteligência geral, como os testes de Wechsler, e ver se o QI era superior a 130. Falo no passado, mas, na realidade, é algo que continua sendo feito hoje em dia, e muito. As altas habilidades são muito mais do que um QI maior que 130 — um ponto de corte que sempre foi totalmente arbitrário, não se baseia em nada além de estatísticas.
Medir o QI é como medir a temperatura. Posso te dizer que você está com 38,5º e que está com febre, mas não é por isso que vou poder dizer que você está gripado, correto? Você pode ter um QI elevado sem ter o funcionamento de altas habilidades (dependendo, novamente, da definição que damos a este perfil), ou ter um QI inferior a 130 e apresentar um perfil de altas habilidades, especialmente se tiver um QI heterogêneo, o que é bastante comum quando há dupla ou múltipla excepcionalidade (quando há outras neurodivergências concomitantes).
Para fazer uma identificação mais precisa de um perfil de altas habilidades, acredito que, além do teste de QI — que pode dar indicações valiosas (não tanto pelo QI geral, mas pela maneira como a pessoa se comporta em cada subteste)—, deveriam ser feitas uma anamnese por meio de entrevista guiada para obter informações qualitativas e buscar elementos que possam indicar altas habilidades, um teste de criatividade e pensamento divergente, e tudo mais que nos permita agregar informações para completar o perfil.
É preciso lembrar que os testes de QI medem principalmente a inteligência acadêmica (por isso são bom preditores de desempenho escolar), uma vez que foram elaborados justamente para detectar pessoas com potenciais dificuldades acadêmicas. Mas, definitivamente, um teste de QI não é suficiente.
Existe distinção nas características de altas habilidades entre homens e mulheres? Até o momento, a pesquisa sobre este tema é muito escassa. Acabei de fazer uma revisão sistemática dos últimos dez anos de pesquisa sobre mulheres neurodivergentes, que incluiu altas habilidades, e havia muito poucos artigos.
Não vejo tanto viés de gênero como em outras neurodivergências, como o autismo, mas definitivamente existe.
Mais do que características diferentes, tem a ver com a percepção que temos da inteligência em geral. É mais fácil valorizar um homem inteligente do que uma mulher, e as diferenças observadas geralmente vêm mais de diferenças de socialização e educação devido a nosso gênero do que de um desenvolvimento cerebral diferente ou características inatas. Mas, como mencionei, isso quase não foi estudado.
Você mencionou antes, o que é dupla ou tripla excepcionalidade?
A dupla excepcionalidade é a coexistência das altas habilidades com outra condição que signifique um desafio ou deficiência. Não se trata da soma das duas condições, mas de um perfil diferente, em geral com grandes paradoxos e contradições em seu funcionamento.
A tripla excepcionalidade ocorre quando a pessoa também faz parte de uma minoria social sub-representada (minoria étnica ou cultural, minoria linguística, grupo LGBTQIA+).
Excepcionalidade múltipla é quando a pessoa apresenta duas ou mais condições além das altas habilidades (por exemplo, pessoa com altas habilidades, TDAH e autismo).
Você acredita que a proporção de autismo entre homens e mulheres é, de fato, de 4 para 1? Ou há poucos diagnósticos entre as mulheres? Não, essa proporção é totalmente distorcida, e as pesquisas começam a ir nessa direção: há muitos “diagnósticos errados” em mulheres autistas, e a falta de diagnóstico ou o diagnóstico tardio faz com que as mulheres não saibam que são autistas até a vida adulta, ou não saibam nunca.
É representativo do preconceito de gênero que existe no autismo.
Por que é tão difícil identificar o autismo em mulheres, principalmente se elas possuem altas habilidades? Eu diria que é por causa do patriarcado: nos ensinam a socializar como uma “menina”, ou seja, a ouvir, a nos misturarmos na multidão, a tentar ser querida por todos, a não nos destacarmos demais, a ter empatia, a observar muito, não gritar, não expressar emoções… Enfim, a gente cresce com esse pacote cultural de “sou menina e tenho que… X”.
Por isso, tendemos a usar muito mais a camuflagem para tentar nos encaixar, porque uma menina que não se enquadra é muito mal vista, porque uma menina tem que socializar com ternura e gentileza. Basicamente, temos muitas habilidades de observação e aprendemos a usá-las para sobreviver socialmente.
Para dar exemplos, como seria uma menina pequena (de menos de 5 anos) com autismo e altas habilidades? Pode ser muito variável. Na realidade, é um espectro muito amplo.
Eu diria que podem ser sinais de suspeita: dissincronia (tendência a interagir com crianças mais velhas ou adultos); perguntas existenciais e enorme curiosidade intelectual incessante, com interesses muito intensos e grande potencial criativo ou grande imaginação (isto para as altas habilidades).
Ao mesmo tempo, possíveis dificuldades de regulação emocional, grande sensibilidade sensorial (com hipersensibilidades sensoriais geralmente acentuadas), necessidade de antecipação e rituais, apesar da fome por conhecimento e novidade. Dificuldades para socializar da forma esperada.
Em geral, expressam se sentir como “alienígenas”, esquisitas, querem voltar ao seu planeta de origem. De fora, é possível perceber “esquisitices”, mas, ao mesmo tempo, a menina consegue compensar, cada vez mais, os desafios que enfrenta. Em geral, são meninas com grande senso de justiça, mas que, ao mesmo tempo, são capazes de seguir as regras minuciosamente. Pode haver hiperlexia, com grande interesse precoce pela leitura e aprendizagem independente. Vamos ver uma menina esperta, curiosa, exigente por informações, exploradora, inquieta.
A presença de ansiedade elevada (escolar e social) pode ser sinal de que coexista, também, autismo ou outra condição, que ela está tentando camuflar. Geralmente também há grande frustração, pois a menina percebe que é capaz de fazer certas coisas difíceis, mas que outras coisas são muito desafiadoras para ela.
Com frequência, tem colapsos porque não consegue se regular emocional e sensorialmente. Depende de cada caso, mas eu diria que essas são as características gerais.
Edição: Gilson de Souza DANIEL
Fonte: Johanna Nublat/Internet