Pessoas com deficiência ganham espaço no campo e no agronegócio

Estado que tem historicamente o agronegócio como base econômica, o Rio Grande do Sul é um dos que mais concentram pessoas com deficiência em seu território —seja no campo ou na cidade.

É no meio rural que a vida parece ficar ainda mais restrita. Nessa localidade, o trabalho geralmente é braçal e pode demandar, muitas vezes, mais esforço físico —condições que podem dificultar a realidade de uma pessoa com deficiência.

É o que percebe Elis Winck, diretora da Apae (Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais) de Tenente Portela, no noroeste do estado.

Gabriel Paiva dos Santos Alfaro, que tem paralisia cerebral, durante a competição Inclusão de Ouro, no Rio Grande do Sul
Gabriel Paiva dos Santos Alfaro, que tem paralisia cerebral, durante a competição Inclusão de Ouro, no Rio Grande do Sul – Eduarda Cortinove/Divulgação

“Há pouca inclusão. Os alunos vêm para a associação transferidos de colégios regulares. Se formam e não conseguem muitas vezes espaço no mercado de trabalho. Tem alguns com deficiência intelectual grave, com dificuldade de alfabetização. Para onde vai essa pessoa?”

No Brasil, 16,7% dos 17,3 milhões de pessoas com algum tipo de deficiência residem no meio rural, de acordo com a PNS (Pesquisa Nacional de Saúde) 2019, divulgada pelo IBGE. A região Sul é a terceira com o maior percentual de pessoas com deficiência, 8%, atrás somente do Nordeste (9,9%) e do Sudeste (8,1%).

Na tentativa de incluir pelo menos uma parcela dessa população, empresas e cooperativas do agro do estado começaram nos últimos anos a oferecer vagas exclusivas para os PCDs.

No Vale do Taquari, na região central do Rio Grande do Sul, a cooperativa Languiru, que processa leite e aves e é dona de supermercados, tem uma espécie de cota para esses trabalhadores. Preocupação reforçada pelo presidente, Paulo Roberto Birck, que é paraplégico.

No seu “segundo aniversário”, como define, há 23 anos, Birck sofreu um acidente em uma máquina agrícola durante uma manutenção. Ficou paraplégico e foi aposentado por invalidez.

“Muita coisa, tive que aprender de novo. Por incrível que pareça, a gente só percebe quando vive isso. A sociedade não leva em conta a questão da mobilidade”, diz, referindo-se ao uso de cadeira de rodas.

Para ele, a aposentadoria não foi um ponto final. Decidiu, depois de alguns anos, voltar a trabalhar.

“Hoje eu estou numa cadeira de rodas e sou o presidente da Languiru. Eu não olho para a cadeira. Eu olho para frente.”

A unidade de Canoas da Massey Ferguson, fabricante de maquinário, já tem alguns desses funcionários trabalhando. Um deles é Cristiano Sarmento, que há 15 anos atua na linha de montagem de tratores agrícolas.

Cego desde a infância, ele terminou o ensino médio convicto de que gostaria de trabalhar em uma grande empresa, “uma multinacional”. Entregou currículo para diversas companhias, e acabou sendo chamado pela AGCO, dona da marca Massey Ferguson.

“O dia em que o Cris sai é o dia em que eu sei que vou passar aperto na linha de montagem”, diz Lucas de Assunção, líder de manufatura sênior da empresa e supervisor de Sarmento.

O funcionário conta que não há nenhuma adaptação no seu espaço de trabalho. Ele sabe de memória onde estão gavetas e prateleiras com peças para cada trator.

“A minha visão são os meus dedos. É o meu tato.

Consigo perceber peças danificadas pela mão. Um chefe antigo disse que, depois que eu assumi a montagem de radiadores, nunca mais deu vazamento”, diz ele, que também é tecnólogo em logística.

Além da abertura de vagas, o mercado também se mobiliza para oferecer produtos específicos para pessoas com deficiência.

É o caso da New Holland, que lançou neste ano um trator acessível.

Com tecnologia desenvolvida em parceria com o Senai-RS de São Leopoldo, a máquina foi pensada para ser operada tanto por pessoas com deficiência motora nos membros inferiores quanto por pessoas sem deficiência.

Para isso, é equipada com uma plataforma de elevação, um controle remoto que ativa a movimentação de embarque e desembarque e um joystick que substitui as funções dos pedais.

Para a especialista em inclusão e influenciadora Andrea Schwarz, esse é um grande passo dentro da área do agronegócio.

“É um movimento das empresas entenderem que também somos consumidores, empresários, trabalhadores, que estamos vivos” afirma ela, que passou a usar cadeira de rodas aos 22 anos devido a uma condição congênita rara.

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Rodeio inclusivo

Em 2019, foi criada a Inclusão de Ouro, uma modalidade de rodeio para pessoas com deficiência. Nela, os competidores montam o tradicional cavalo crioulo, em formato similar ao de campeonatos já estabelecidos.

Criadora e atual coordenadora da categoria, Josilene da Silva Martins explica que a prova surgiu com o objetivo de dar oportunidade para todos.

“Dar oportunidade para essas pessoas fazerem o que elas já fazem no dia a dia. Elas sempre montaram a cavalo, elas sempre foram no rodeio. É dar a oportunidade de a pessoa participar, de exercer o nosso direito de ser cidadão”, afirma Martins, que tem luxação congênita do quadril.

Atualmente, a prova conta com quatro categorias, para diferentes níveis de equitação. Podem competir pessoas com as mais diversas deficiências —a competição é entre todas elas. Neste ano, 26 cavaleiros participaram.

Gabriel Paiva dos Santos Alfaro, que tem paralisia cerebral, participou de todas as competições até agora no Rio Grande do Sul.

Morador de Tavares, no sul do estado, ele descobriu o mundo dos cavalos ainda na infância, em Porto Alegre, na equoterapia. Foi com ela que, mais do que aprender a andar aos nove anos, hoje anima o público que assiste às provas no parque de Exposições Assis Brasil, em Esteio, palco da Inclusão de Ouro.

“É uma sensação única, poder participar. Além de que o animal me ajudou a evoluir. É um animal que entende o cara, né”, diz ele, que hoje “faz tudo sozinho”, com alguma dificuldade de motricidade.

Tia de Alfaro, Selma Paiva diz que ver o sobrinho montando é “um troço fora de série”.

Para participar das provas, o cavaleiro conta com “patrocínios” da sua cidade: um vizinho doa a gasolina, outro empresta o cavalo.

Outro que compete todos os anos é Dionatan Braz Martins, de Canela. Corretor rural em um dos municípios mais turísticos do Rio Grande do Sul, ele sempre foi apaixonado por cavalos. E, mesmo tendo nascido sem os membros inferiores, isso não o impediu de cavalgar —e, mais tarde, de competir.

“É uma paixão mesmo, desde pequeno. Eu sempre montava, mesmo com as minhas limitações. Não usava cinto na época. Andava, caía e levantava e ia de novo.”

Hoje, por trabalhar também como guasqueiro (quem mexe com couro cru), Martins fez um cinto sob medida para si e acoplou na sela do cavalo, para dar mais estabilidade na cavalgada.

“Seria uma mão na roda se isso já existisse.”

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Esta reportagem foi produzida durante o Lab Tereos + Folha – 2º Programa de Jornalismo Especializado em Agroindústria Sustentável

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