Preconceito deve ser combatido como doença crônica nas organizações, diz secretária

Lisiane Lemos, nova secretária do Governo do RS, defende que diversidade demanda tempo e dinheiro

O nome mais badalado do secretariado de Eduardo Leite (PSDB) provavelmente esbarrou com ele em algum corredor da prefeitura de Pelotas, em 2010, quando ele era vereador e ela estagiária de Direito na procuradoria do município.

Treze anos depois, ambos cresceram como jovens líderes.

Em 2018, aos 33 anos, Leite se tornou o mais jovem governador do Rio Grande do Sul, e foi reeleito nas eleições passadas.

No ano anterior, a também pelotense Lisiane Lemos entrou na Forbes Under 30, lista de talentos abaixo de 30 anos apontados como agentes de mudança em suas áreas de atuação. Na ocasião, já trabalhava há quatro anos como executiva de vendas na Microsoft, onde participava do Blacks at Microsoft e dirigia a Rede de Profissionais Negros, coletivo que busca conectar profissionais negros, empresas com políticas de diversidade e movimentos sociais.

Em 2019 migrou para o Google, onde foi Gerente de Recrutamento de Diversidade, Equidade e Inclusão.

Em trabalho remoto durante a pandemia –ocasião em que se reconectou com Pelotas–, Lisiane fundou o Conselheira 101, projeto que qualifica mulheres negras para conselhos de administração em empresas. Na sua quarta edição em 2023, abriu vaga também a indígenas.

Imagem mostra uma mulher negra jovem sorridente. Ela tem cabelos lisos, usa camisa laranja, calça jeans e tênis adidas preto. Está sentada em uma cadeira em um salão amplo e vazio, com cortinas ao fundo e iluminado por lustre.
Lisiane Lemos, nova secretária de Inclusão Digital e Apoio às Políticas de Equidade no governo do RS, no Salão dos Espelhos do Palácio Piratini – Daniel Marenco/Folhapress

O encontro (ou reencontro, eles não lembram) com Leite se deu em uma ligação por vídeo ao final de 2022, enquanto planejava viver em Chicago e pleiteava o visto para “pessoas com habilidades extraordinárias”. Aos 33 anos, convidada para assumir a recém criada Secretaria Extraordinária de Inclusão Digital e Apoio à Políticas de Equidade, comunicou ao marido: “Estamos de mudança para Porto Alegre“. 

Em diversas entrevistas a senhora foi perguntada sobre desejos e planos de futuro. Em nenhuma delas mencionou nada parecido com o setor público. Por que a mudança?

Poucas vezes na vida a gente tem a chance de impactar de uma vez só 10 milhões de pessoas em 497 municípios.

De trabalhar em tão larga escala com o que se ama. E eu gosto de construir coisas.

A secretaria não existia, nós estamos construindo do zero. Quando o governador [Leite] pediu para conversar comigo, achei que ele ofereceria algo relacionado a justiça, igualdade racial, algo assim.

Quando me apresentou o plano de inclusão digital, nem precisou ele terminar de falar para eu aceitar.

Como ela vai funcionar e quais são os principais objetivos dela?

Será uma secretaria extraordinária, o que significa que ela é menor, mas trabalha de forma transversal com as outras 26. Serão três frentes de trabalho: educação para o digital –voltado a estudantes e professores – , transformação digital do pequeno empreendedor– um pedido pessoal do governador, que é ajudar o agricultor, o dono do mercadinho, a inovar, e experiência do cidadão– e modernizar tudo o que o cidadão usa do governo estadual. Não só do nosso, porque o Rio Grande do Sul vende soluções a outros 17 estados.

O objetivo é estar no celular de todos os gaúchos.

Sua equipe terá indicações políticas?

Não. Meu acordo com o governador é que eu teria total liberdade para compor o meu time. Então terei cinco servidores no mesmo nível e mais a chefe de gabinete.

Queria também que a composição do meu time fosse um retrato do que eu acredito, então ele é multigeracional, multiétnico e, dos cinco cargos, dois serão de servidores de carreira a serem selecionados pelo Qualifica, nosso processo de seleção interna.

Sou filha de servidores públicos e valorizo essas pessoas. Essas pessoas vão conversar com os interlocutores das secretarias com estrutura maiores para tocar projetos. A ideia é andar sempre em duplinhas.

A sua trajetória é praticamente toda no setor privado. Nestes primeiros dias já deu para perceber as primeiras diferenças para o governo, os primeiros entraves?

Eu acho que as pessoas glamourizam o setor privado e ele é mais parecido com o público do que elas imaginam. Tem seus processos, suas burocracias, sobretudo em início de gestão. Nunca fui aquela funcionária deslumbrada que achava que o Google era o melhor lugar do universo. Na minha vida, trabalho tem o lugar de trabalho. Assim como no Google, aqui eu tenho usado muito o cartão de novata.

Como eu não sei fazer, eu nem pergunto se posso falar com Fulano. Se ao fazer isso, incomodo Beltrano. Nunca trabalhei com isso, então eu posso.

A sra. também tem uma visão também desglamourizada, ou desmistificada, da África, não tem?

Eu digo que me tornei feminista em Moçambique, em 2013

. Lá a mulher é subserviente, nunca protagonista.

Pode ser uma executiva de sucesso, mas desde que primeiro ela sirva ao marido e a outros.

Então lá eu aprendi a valorizar o meu país. Tem um pouco de paralelo com essas descobertas no governo –no sentido de descobrir que tem muita coisa boa no Brasil que estava embaixo da superfície na minha percepção.

Como ativista, viver lá desmistificou muito dessa coisa da África mágica. De que tudo vai dar certo porque todo mundo é negro.

Existe uma questão de classe muito grande. Mas já fui, voltei e sou muito grata pelo que aprendi. Inclusive minha única tatuagem diz “gratidão” em um dialeto moçambicano.

Sua secretaria é também de equidade racial e a sra. é a única secretária negra. Isso incomoda?

Isso foi bastante criticado antes da minha posse [em 23 de fevereiro]. Pensei:

‘Eu de férias e eles resolvendo esse B.O.’ Minha resposta é que estou trabalhando para que na próxima gestão eu não seja a única.

Meus colegas [de secretariado] me consultaram para que eu indicasse talentos para outras camadas de liderança e com capacidade para ascender, o que me dá abertura para cobrar. Eu fui a única negra na maioria dos lugares em que estive.

Então, ao mesmo tempo que incomoda, é também um combustível para que não seja mais. Para que a gente construa um pipeline de lideranças negras.

A sra. já disse que para contratar um bom profissional negro, precisa apenas do seu celular e de cinco minutos. O que falta para governos e empresas resolveram a questão de desigualdade racial nas equipes com mais agilidade?

Quando eu disse isso, quis dizer que essas pessoas existem.

Estão por aí.

Mas isso não quer dizer que implementar e consolidar um projeto de equidade e diversidade seja fácil. Isso em qualquer minoria.

Não é só abrir a vaga. Tem que garantir que a pessoa fique mesmo sem ter tido o mesmo arcabouço profissional, as mesmas oportunidades pregressas, o mesmo inglês fluente do colega ao lado. Eu estudei diversidade na Kellogg [Kellogg School of Management, escola de negócios da Universidade Northwestern, em Illinois, nos EUA]. Demanda tempo, tem uma curva muito mais longa e para dar certo é preciso insistir.

O preconceito é uma doença crônica. Se você não monitora dentro da sua organização, ele logo volta.

E tem outra: a vontade de resolver um problema é proporcional ao dinheiro investido. Muitas empresas abrem um setor de diversidade, mas, quando você vê o orçamento, percebe que ela não faz questão de resolver esse problema tanto assim.

Como esse episódio do trabalho análogo à escravidão na serra gaúcha bateu na sra.?

Bateu forte e eu pedi para ir a Bento Gonçalves. Ser pessoalmente envolvida nos grupos de trabalho que surgiram dele.

Especialmente a fala daquele vereador [Sandro Fantiel, de Caxias do Sul], pela qual eu me senti pessoalmente ofendida

. Mas independentemente disso, a minha cabeça é a de soluções.

Em criar mecanismos para que venha a safra não só da uva, mas do pêssego, da maçã, todas elas e não se reproduzam as mesmas condições de trabalho.

E me preocupa também a questão do preconceito nessas regiões –como fazer com que o estado receba adequadamente essas populações sazonais de outros estados para esse tipo de trabalho.

É curioso que a sra., em um TEDx, menciona que tinha inveja das aulas de História em que as crianças brancas se sentiam orgulhosas de estudar a imigração europeia, enquanto o papel dos negros era o de escravizados invisíveis. Esse episódio reproduziu isso séculos depois.

Sim. So things have comes full circle [o ciclo fica assim fechado], não é mesmo? Mas eu não falava isso de forma pejorativa.

Cada vez mais eu tento entender as pessoas e consigo perfeitamente entender o orgulho que um povo tem de se chegar a outro país sem nada e construir algo. Trabalho é um valor importante para eles, mas como é para mim também.

Por isso eu insisto que a minha busca é por equidade. Eles sempre tiveram essa visibilidade sobre as suas origens. A gente tem que equilibrar as coisas para que todo mundo tenha.

Falando em História, tramita na Assembleia um projeto de lei para tornar o Hino Rio-Grandense intocável, a fim de defender um trecho considerado racista [povo que não tem virtude, acaba por ser escravo]. O que a sra. pensa a respeito?

O governador está de aniversário hoje [em 10 de março], não me faça estragar o dia dele (risos).

Olha, eu costumo ser cuidadosa com o que eu falo, mas não posso desdizer o que já disse.

Eu jamais vou cantar essa estrofe. É dizer que todos os meus ancestrais que lutaram muito, que foram sequestrados, não têm virtude.

O Rio Grande do Sul tem cerca de 20% de população negra, você consegue imaginar como é para uma criança negra cantar isso?

Sobre o projeto de lei, minha resposta é que eu não tenho controle sobre a opinião das pessoas e sobre o que leva essas pessoas a defende-las.

Mas, se dependesse de mim, mudaria o hino amanhã.

A sra. vê um mérito em isso ao menos estar sendo debatido? Em haver uma reflexão sobre a estrofe, ainda que não mude?

Essa reflexão não é nova, não.

Quando eu fazia dança em Pelotas, lá por 2005, Giga Giba [músico natural de Pelotas, morto em 2014] ainda era vivo. Nós já discutíamos isso e o movimento negro já propunha uma mudança no hino.

A proposta alternativa, cuja autoria eu não me lembro*. Era “povo que tem força e virtude, a clava quer ver escravo”.


*A estrofe alternativa é de autoria do poeta gaúcho Oliveira Silveira, e na verdade diz “povo que é lança e virtude, a clava quer ver escravo”.

O termo “lança” faz referência aos lanceiros negros, combatentes da Revolução Farroupilha (1835-1843) que teriam sido atacados desarmados com a conivência dos líderes farrapos para que não precisassem ser libertados ao final do conflito.

RaioX Lisiane Lemos, 33

Gaúcha natural de Pelotas, é bacharel de Direito pela UFPel, com MBAs pela FIAP e Fundação Dom Cabral. Em 2013, foi a Moçambique pela AIESEC, plataforma intercâmbio para jovens profissionais em desenvolvimento.

Tem passagens profissionais por Microsoft (2013-2019), como executiva de vendas, e Google (2019-2022), empresa em que se tornou Gerente de Programas de Recrutamento de Diversidade, Equidade e Inclusão.

À frente de projetos pessoais como o Rede de Profissionais Negros e o Conselheira 101, foi citada como jovem liderança pela Forbes Under 30.

Em 23 de fevereiro tomou posse como secretária de Inclusão Digital e Apoio às Políticas de Equidade no Governo do Rio Grande do Sul.

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