Operadoras reconhecem falta de profissionais qualificados em suas redes, e pacientes buscam cobertura na Justiça
São Paulo
A crescente demanda por diversos tratamentos de TEA (transtorno do espectro autista) no Brasil se tornou um dos principais gargalos para planos de saúde do país, que reconhecem a insuficiência das redes conveniadas e falta de profissionais qualificados.
Como reflexo, explodiram as reclamações de usuários e ações na Justiça contra empresas do setor, motivadas por frequentes negativas de cobertura, descredenciamento de clínicas e cancelamento de contratos, entre outros fatores.
De janeiro a outubro, a ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) recebeu mais de 12 mil queixas relacionadas à assistência de pacientes autistas –praticamente o dobro das reclamações registradas em todo o ano passado e alta de 1.000% na comparação com 2019. Hoje, uma em cada cinco NIPs (Notificações de Intermediação Preliminar) recebidas pela agência está relacionada a TEA.
A neuropsicóloga Joana Portolese explica que o TEA abarca um grupo muito heterogêneo de pacientes, divididos entre casos leves, moderados e severos.
Em geral, o transtorno é acompanhado de prejuízo sensório-motor e outras comorbidades, o que torna o tratamento multidisciplinar fundamental para o desenvolvimento das crianças.
“Aproximadamente 30% das crianças são não verbais, quase 40% têm deficiência intelectual, e você tem também crianças com síndromes genéticas e quadros neurológicos. Cada paciente precisa de um apoio específico, mas de maneira geral as intervenções baseadas em evidências são as terapias comportamentais de desenvolvimento naturalista”, afirma Portolese, citando seletividade alimentar, dificuldade motora e sensibilidade visual entre as manifestações clínicas mais frequentes do autismo.
Em 2013, uma revisão do DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) passou a classificar o autismo e outros transtornos globais do desenvolvimento (como o transtorno desintegrativo infantil e a síndrome de Asperger) como TEA. Desde então, as pessoas são diagnosticadas em um único espectro com diferentes níveis de gravidade.
O aumento da pressão sobre o setor de saúde suplementar está associado não só à maior demanda —impulsionada pela conscientização sobre o transtorno e maior acesso a serviços diagnósticos—, mas também a recentes mudanças regulatórias.
Desde o ano passado, convênios são obrigados a cobrir qualquer método indicado pelo médico assistente para o tratamento de pacientes autistas e com outros transtornos globais do desenvolvimento. A ANS já havia derrubado, em 2021, o limite de sessões com psicólogos, terapeutas ocupacionais e fonoaudiólogos para o tratamento.
Há quatro anos, Portolese coordena o Ambulatório de Autismo do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, em São Paulo. O serviço, que oferece diagnóstico e encaminhamento médico gratuitamente, tem sido cada vez mais procurado, com destaque para o aumento das crianças com menos de três anos.
“É difícil apenas um profissional dar conta de toda essa complexidade. Então o tratamento envolve algumas horas de terapias específicas por semana, até diárias, dependendo muito do perfil da criança e os objetivos em relação ao desenvolvimento.”
A ampliação da cobertura e busca cada vez maior pelo tratamento tiveram como consequência o aumento dos processos judiciais contra convênios médicos. No TJ-SP, o número de ações contra planos de saúde cresceu 17% no último ano, e as alterações regulatórias pela ANS são apontados por especialistas como importantes fatores de pressão.
Segundo a advogada especialista em direito à saúde Estela Tolezani, sócia do escritório Vilhena Silva Advogados, as redes conveniadas têm se mostrado insuficientes para o volume de atendimento.
“Hoje os planos indicam clínicas credenciadas, mas aí quando a criança começa o tratamento, a sessão que deveria ter uma hora, dura 30 minutos, porque a demanda é muito grande. Também tem respostas de clínicas no sentido de que não tem vaga, só daqui a três meses. Ou então fica muito distante da residência da criança”, afirma Tolezani.
Tais problemas estariam motivando muitos pais a buscarem, por meio do Judiciário, o reembolso integral pelo tratamento em serviços não credenciados.
Foi o que aconteceu com a farmacêutica Karina Cadette, 41, que observou piora no desenvolvimento de seu filho, que tem 9 anos, após três meses de tratamento em uma clínica indicada pelo convênio médico. “Quando troquei de plano, recebi a indicação de uma clínica própria da operadora.
Ficava perto de casa, mas era muito lotada, com profissionais que não se encaixavam dentro do que o Rafael precisava e sem horários”, disse a moradora da zona leste da capital paulista.
Mãe de menino autista teve que recorrer à Justiça para obter reembolso de tratamento multidisciplinar pelo convênio
Diagnosticado com autismo severo desde os dois anos, Rafael tem rotina de tratamento que envolve diferentes especialidades com indicação médica: métodos baseados em ABA (Análise do Comportamento Aplicada, do inglês Applied Behavior Analysis), psicologia, terapia ocupacional, psicomotricidade e técnica Prompt de fonoaudiologia.
Diante da falta de profissionais habilitados no serviço indicado pelo plano, a mãe decidiu recorrer à Justiça para que a empresa a reembolsasse pelo tratamento em outras clínicas, que custa em torno de R$ 10 mil por mês. “Em poucos meses já consigo perceber melhora na evolução dele”, disse Cadette.
Entre agosto e novembro, o gabinete da deputada estadual Andrea Werner (PSB) –fundadora do Instituto Lagarta Vira Pupa, que defende os direitos de pessoas com deficiência –recebeu cerca de 300 denúncias de descredenciamento de clínicas e profissionais por 15 planos de saúde.
São casos de pacientes que foram encaminhados para serviços próprios das operadoras, mas se depararam com problemas no atendimento.
Outras denúncias recebidas pela deputada, sobre cancelamento unilateral de contratos de pacientes autistas por operadoras, se tornaram alvo de investigação pelo MP-SP (Ministério Público de São Paulo).
“A maioria de nós autistas não consegue atendimento de qualidade na rede credenciada e por isso judicializa.
A regulamentação aprovada pela ANS foi um avanço, mas não se mostrou suficiente para refletir no aperfeiçoamento do serviço prestado”, afirma a advogada do instituto Carolina Nadaline, defendendo maior fiscalização da agência governamental sobre as empresas da saúde suplementar.
Lei obriga planos a cobrirem tratamentos fora do rol da ANS
O setor, atualmente com 50,9 milhões de usuários, reconhece a formação de um gargalo e dificuldade de atendimento.
Em pesquisa feita com oito empresas associadas, a FenaSaúde (Federação Nacional de Saúde Suplementar), que representa os maiores planos do país, confirma a existência de vazios assistenciais e falta de profissionais capacitados em diversas terapias.
“Existe uma dificuldade, até em função do aumento muito expressivo dessa demanda, de você encontrar profissionais para atender todos.
Da forma como foi feito, sem definir um protocolo e criar delimitações, isso trouxe a explosão da procura por essas terapias e um movimento de pedidos de reembolsos em grandes volumes”, afirma Vera Valente, diretora-executiva da entidade, cujas associadas respondem por cerca de 32% dos vínculos da saúde suplementar do país.
A pesquisa da FenaSaúde também identificou aumento das solicitações de terapias desconhecidas ou sem eficácia comprovada.
Características que podem ajudar a identificar pessoas com autismo
A Abramge (Associação Brasileira de Planos de Saúde), que reúne 142 operadoras de pequeno, médio e grande porte –e que juntas correspondem a 36% do mercado –identificou os mesmos problemas no último ano. Ambas as entidades dizem que suas associadas estão ampliando os serviços próprios e capacitando profissionais.
“A gente se preocupa muito com a segurança e eficácia das terapias que estão sendo propostas.
Todos tiveram que se adequar para dar melhor assistência para o beneficiário, apesar de não haver uma orientação de linha de cuidado pelo órgão regulador”, disse Cássio Ide Alves, superintendente médico da Abramge.
Sufocadas financeiramente, as empresas articulam pressão à agência reguladora.
“A gente já se junta e conversa muito com associações de pacientes e com outras entidades profissionais, e estamos tentando viabilizar uma proposta de alteração do rol para a ANS. Queremos fazer isso com uma frente ampla, não só as empresas do setor”, disse Alves, que nega se tratar de uma tentativa de limitar o acesso.
“Enquanto não tiver regulação adequada sempre terá gargalo, porque tem muita gente utilizando de forma inadequada”, acrescentou o superintendente médico.
Em outubro, a ANS promoveu uma audiência pública para debater a assistência aos beneficiários de TEA pela saúde suplementar e a atuação da agência reguladora.
Entre os convidados, havia sete representantes do setor, quatro representantes de conselhos profissionais e uma associação de apoio a pacientes.
Procurada, a agência disse por meio de nota que fiscaliza a atuação das operadoras de forma planejada e preventiva.
Entre as ações citadas está a suspensão temporária da comercialização de planos em função de reclamações.
Edição: Gilson de Souza DANIEL
Fonte;Folha de São Paulo/Internet